Ação do Ministério Público Federal listou série de declarações do presidente e dos ministros Damares Alves e Paulo Guedes que discriminam e reforçam preconceito. Justiça Federal em SP determinou pagamento de R$ 5 milhões por danos morais coletivos e investimento em campanhas pela conscientização. Cabe recurso da decisão.
A Justiça Federal em São Paulo determinou que o governo federal repare a população por meio do pagamento de R$ 5 milhões pelos danos morais provocados por declarações do presidente Jair Bolsonaro e seus ministros, que discriminam e reforçam o preconceito contra mulheres. Cabe recurso da decisão.
A União também deve investir R$ 10 milhões em campanhas pela conscientização sobre a violência, assédio e desigualdade contra as mulheres, sobre os direitos que as vítimas de violência têm de contar com a segurança, a saúde e a assistência pública, e sobre a implementação políticas públicas que visem a igualdade de gênero.
A Advocacia-Geral da União afirmou, por meio de nota, que não comenta processos em tramitação judicial.
A decisão divulgada na quarta-feira (23) é referente a uma ação movida pelo Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP), que apontou que mensagens e pronunciamentos de agentes públicos da gestão federal continham caráter discriminatório e preconceituoso em relação às mulheres, impactando negativamente a sociedade brasileira.
“Os fatos e provas retratadas nos autos evidenciam a despreocupação e até mesmo o escárnio dos agentes do governo com a situação de marginalização social das cidadãs brasileiras, além de denotar o absoluto menosprezo em relação ao dever institucional de promoção da igualdade de gênero e ao princípio da moralidade administrativa, ambos relegados em prol de determinada cartilha política”, escreveu a juíza Ana Lúcia Petri Betto, da 6ª Vara Cível Federal de São Paulo.
O que diz a ação do MPF
Entre os exemplos citados de abuso da liberdade de expressão estão:
- a declaração do presidente de que cada mulher no governo “equivale por dez homens”;
- a declaração do presidente de que “o Brasil não pode ser o país do turismo gay”, mas se alguém “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”;
- a declaração do presidente de que o Brasil é uma “virgem que todo tarado de fora quer”;
- a declaração do presidente em visita à Arábia Saudita de que “todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres“;
- a declaração do presidente sobre o apoio do presidente da Argentina, Alberto Fernández, ao aborto: “tá aí, povo argentino, lamento, é o que vocês merecem“;
- a ofensa do presidente a uma repórter da “Folha de S. Paulo” com insinuações sexuais por uma matéria sobre disparo em massa de mensagens;
- a declaração da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, de que a mulher deve ser submissa ao homem no casamento;
- a declaração da ministra Damares Alves de que o abuso sexual de meninas na Ilha de Marajó, no Pará, se deve à falta de calcinhas;
- a declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que a companheira do presidente da França “é feia mesmo”;
- a declaração do ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, de que aborto não deve ser tratado como questão de saúde, e comparou o debate a “uma gilete dentro de um bolo”.
Para o MPF, os discursos veiculam estereótipos que reforçam a discriminação e o preconceito, estigmatizando as mulheres, perpetuando a desigualdade social e impedindo a promoção da cidadania e da dignidade humana, violando, portanto, a Constituição Federal.
Em sua defesa, a União argumentou que as declarações consistiram em manifestações pessoais das autoridades, não representando atos executivos estatais, que foram tiradas de contexto, e que o MPF não comprovou a ocorrência do dano coletivo decorrente dos discursos.
Conclusões da Justiça
Em sua decisão, a juíza considerou que:
- em razão das declarações estarem inseridas no contexto dos valores fundamentais da sociedade, o dano moral coletivo dispensa a comprovação do dano concreto;
- que a Constituição prevê alguns limites à liberdade de expressão, a exemplo da proteção à honra;
- que, diferentemente do que alegou o governo, a comunicação não se restringe à intenção do emissor e inclui a aferição do impacto sobre os interlocutores, os códigos utilizados, o canal escolhido e o contexto em que se inseriu;
- que as declarações foram emitidas durante o exercício das funções públicas, que não tinham relação com as ações que se esperam dos cargos ocupados, que foram direcionadas a um público amplo e irrestrito, “com nítida intenção de repercussão e até mesmo com deliberada ênfase nos excertos ofensivos, denunciando a clara intencionalidade dos emissores”.
“Se as expressões utilizadas, por si só, são dignas de espanto e repúdio, assumem ainda maior gravosidade quando inseridas no contexto fático e social em que se situam as cidadãs brasileiras, de intensa desigualdade e privação, motivadas pela supremacia cultural do patriarcalismo e da heteronormatividade cultuados publicamente pelos agentes do governo”, escreveu a juíza Ana Lúcia Petri Betto, da 6ª Vara Cível Federal de São Paulo.
“Não se mostra crível que ocupantes de altos cargos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, a quem compete institucionalmente o estabelecimento de políticas públicas para a promoção da igualdade, da isonomia, da harmonia e da paz entre os cidadãos, façam uso de seus cargos para investir contra parcelas da população historicamente inseridas em situação de hipossuficiência social”, continuou.
G1